A sociedade guarapuavana, ao longo dos anos, na lente da história

Nos 200 anos de Guarapuava, pesquisador traça um panorama histórico sobra a cidade

Murilo Walter Teixeira – um dos mais importantes historiadores do Paraná – cidadão guarapuavano, faz um breve relato, com exclusividade para o Extra Guarapuava, sobre o início e o desenvolvimento da cidade que completa seu bicentenário.

Começo – Na trajetória histórica de Guarapuava podemos desenvolver inúmeras vertentes de pesquisa, desde suas lendas que empolgavam sua população, até as nuances de algumas características próprias, inerente a seu povo, seu trabalho e suas conquistas.

Assim, com a presença da coroa portuguesa em solo brasileiro, quando o Príncipe Regente D. João através de uma Carta Régia, proporcionou a organização de uma expedição destinada a explorar e povoar os campos de Guarapuava, o que se deduz que fazia parte de uma estratégia do poder central para consolidar a posse de área do Brasil Meridional, assim, redescobrir os campos de Guarapuava.

Com a expedição vieram mais de uma centena de militares, alguns de origem portugueses, outro tanto de familiares destes, e, naturalmente, empregados como: almoxarife, cirurgião, linguará, armeiro, ferreiro, furriel, porta estandarte, escravos e agregados, além de pessoas ávidas em novos empreendimentos. Foram os primeiros moradores na Aldeia de Atalaia.

A freguesia – Em nove de dezembro de 1819 instala-se a Freguesia N. S. de Belém. Para tanto é elaborado um documento estabelecendo um conjunto de normas a serem observados pelos habitantes do aglomerado urbano. Segundo minhas pesquisas: único no contexto brasileiro. Utilizou-se de um instrumento jurídico português na distribuição de terras – a sesmaria, na qual se iniciou o povoamento e a formação de uma fonte de renda com a agropecuária.

A consolidação dos criatórios e das edificações nas fazendas e na vila ocorre após aumento substancial de bovinos, lanígeros, equinos e muares o que propiciou a sua comercialização para os centros populosos próximos, originando um tropeirismo a moda guarapuavana.

Primeiros Moradores – Nos primeiros cinco livros de assentamento de casamentos, elaborados ainda no século XIX, percebe-se que os nubentes, na maioria, provinham da própria Capitania de São Paulo da qual fazia parte os campos de Guarapuava.

Também vieram integrar a comunidade guarapuavana alguns imigrantes, oriundos de países europeus, tais como: Pedro Aloys Scherer da França, o dinamarquês Luiz Daniel Cleve, os prussianos Cristiano e Francisco Pletz, o inglês Carlos Stuart, o austríaco Leopoldo Bischof, os italianos Antônio Missino, Luiz Ciscato, Pedro Carli e o maestro Rispoli, o alemão-russo Jorge Walter e um grupamento de poloneses, sírios libaneses e tantos outros.

Pode-se afirmar que essas pessoas, ao lado da população já existente, formatizaram as características sociais e comportamentais que deram a feição do guarapuavano. O aglomerado urbano, formado desde a Freguesia de N. S. de Belém em1819, atingiu a condição de vila no ano de 1852 e cidade em 1871.

Expressões Culturais – Marcantes manifestações culturais aconteceram a seguir. É bom destacar que a atividade principal era a cultura agropastoril, o que ensejou as cavalhadas como principal manifestação folclórica ao lado da dança de São Gonçalo, Romaria do Divino, Festas Juninas e manifestações de cunho religioso em razão do predomínio da religião.

No final do século XIX, é formado um grupo teatral que deu origem a construção de um teatro que perdurou até os anos quarenta do século XX. Alguns dramaturgos se destacaram.

Coroando os eventos culturais, é constituído o Clube Guaíra, em 1904, fundado o Colégio N. S. de Belém no ano de 1907 e a construção de um estabelecimento de ensino, o Grupo Escolar n° 4, mais tarde denominado Visconde de Guarapuava em 1910.

Nessas conquistas sociais está incluída a construção de uma estrada carroçável que atinge Guarapuava no início do século XX, permitiu maior intercâmbio comercial e cultural com centros maiores.

Outro momento que provocou surpresa na vida cultural da cidade foi quando um grupo de jovens se dedicou na feitura de jornais de cunho literário. Este fato ocorreu na segunda década do século XX. Diversos jornalistas se destacaram nas edições dos jornais que eram distribuídos ao público leitor.  Era o apogeu de uma juventude dedicada às artes literárias, dramaturgia e área musical.

A cidade – Assim, com uma economia consolidada nas atividades agropastoris, aspectos culturais referenciados pela população, ao lado de manifestações religiosas consistentes retratadas na imponente Matriz, possuidora de uma arquitetura colonial arrojada ao lado dos casarões que circundavam a praça central, mostrava toda sua exuberância. Identificada, nesse momento, como uma cidade modelo.

Aos poucos se extinguiu a vertente da vida campeira. Suas aspirações, seus temores, seus louvores, seus costumes, seus valores, suas tradições eram devoradas pelas mudanças nos costumes. Constitui o hibridismo cultural na forma explicada por um cientista social (Canclini).

A manifestação folclórica das cavalhadas se distância da nossa visão. Dentre as lendas dedilhadas, sumiu a da serpente da lagoa. Também do degolado, dos aleijadinhos e outras. Sem falar nos clubes sociais: Sociedade Operaria Beneficente (SORB), Cruzeiro do Sul dos poloneses. O Clube Guaíra e a Sociedade Rio Branco ainda persistem, nem que seja como resíduo do imóvel. Os clubes esportivos também estão no mesmo diapasão. Sumiram.

Anos 50 – Tomando como marco esse ano e datas aproximadas, ocorre um desenvolvimento econômico em razão da extração da madeira, constituindo a formação de uma indústria que se propagou pela região. Aumentam o número de serrarias. Nesse momento, a ferrovia é uma realidade. O desenvolvimento da indústria madeireira serve como linha divisória para novos conceitos. Foi o início de mudança da identidade social. A demografia toma novos parâmetros. A área urbana que possuía, aproximadamente, cinco mil habitantes no ano de 1950, sobe para dezesseis mil no ano de 1960. É um aumento apreciável. E assim, sucessivamente até o ano de 1980 quando a população urbana supera a população rural.

Guarapuava 200 Anos. Vemos novos parâmetros, novos atores e novos desafios. O predomínio de uma agricultura moderna transforma hábitos, costumes e tradições. Numa comunidade em que todos os membros compartilham os mesmos conhecimentos, crenças e gostos, cria-se um significado, originando uma ampla teia, transformando em uma realidade intersubjetiva. A nosso ver, destaca-se não uma identidade, mas, várias. Como menciona o sociólogo Stuart Hall, o sujeito tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas.

Cabe ressaltar que a cultura local construída, nesses longos anos, através de sua história, nas memórias narradas ao pé do fogo de chão e de suas imagens produzidas, resultou num rico significado para seu povo.

Percebi um aumento da autoestima com a presença da neve que deslumbrou a população local. A partir de então, os diversos nichos sociais da cidade se envolveram em projetos quer culturais, sociais ou econômicos. O fluxo migratório universitário que se estabeleceu em Guarapuava, nestes últimos anos, fomentou mudanças comportamentais que modificaram o caminhar até então existente.

Saudamos esta cidade que recebe uma população ávida em progresso e sua sustentabilidade e está imbuída nos novos tempos de transformações sociais intensas. O indômito Cacique Guairacá, audacioso e valente, nos deixou uma legenda que certamente culminará numa vida de paz e prosperidade. Viva, Guarappuava!